
A Ilegalidade das Negativas de Tratamentos Essenciais por Planos de Saúde: Uma Análise Jurídica
1 de maio de 2025Introdução
A dinâmica das relações familiares contemporâneas tem sido profundamente remodelada pela intensificação da globalização, pelo aumento da mobilidade internacional, pelas novas modalidades de trabalho e pela expansão dos mercados globais. Nesse cenário, o número de casamentos envolvendo cônjuges de diferentes nacionalidades ou celebrados em países distintos cresce exponencialmente. Consequentemente, quando esses laços matrimoniais se desfazem, o Direito se depara com intrincados desafios.
Questões cruciais emergem: qual ordenamento jurídico deve disciplinar o divórcio? Qual Estado possui jurisdição para processar a ação? Como conciliar decisões proferidas por cortes estrangeiras? A complexidade dessas indagações demanda uma análise multidisciplinar, que integra o Direito de Família, o Direito Internacional Privado e os instrumentos normativos internacionais vigentes.
O presente artigo propõe uma análise crítica do critério da residência habitual como elemento de conexão na determinação da lei aplicável ao divórcio internacional. Serão explorados os desafios práticos decorrentes de sua aplicação, os potenciais choques normativos e as alternativas reconhecidas pela doutrina e jurisprudência internacionais.
Residência Habitual como Elemento de Conexão
A residência habitual figura como um critério basilar para a definição da lei aplicável ao divórcio em diversos ordenamentos jurídicos, a exemplo do Regulamento Roma III da União Europeia. Tal regulamento elege a existência de um vínculo real e duradouro entre os cônjuges e um determinado sistema legal como ponto central, admitindo, inclusive, a escolha prévia da lei aplicável, desde que haja uma conexão legítima com essa legislação.
Entretanto, a própria definição de residência habitual carece de uniformidade no cenário internacional. Enquanto alguns países estabelecem um período mínimo de permanência como requisito, outros priorizam elementos subjetivos, como a intenção de fixar moradia, os laços afetivos ou a integração profissional e educacional. Essa ausência de um conceito universalmente aceito fomenta a insegurança jurídica, especialmente em casos envolvendo migração recente ou múltiplas mudanças de domicílio.
Essa instabilidade conceitual pode, na prática, desencadear a propositura de ações paralelas em diferentes jurisdições e a prolação de decisões conflitantes, sobretudo quando tribunais distintos adotam critérios diversos para fundamentar sua competência.
Conflitos de Leis e Jurisdição
A diversidade de sistemas jurídicos com potencial para reger o divórcio internacional inevitavelmente suscita conflitos de normas e de jurisdição. No Brasil, embora o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) determine que os efeitos do casamento sejam regidos pela lei do domicílio dos cônjuges, não há uma disposição específica acerca do divórcio com elementos de estraneidade. Essa lacuna normativa impulsiona a necessidade de interpretações jurisprudenciais e o recurso subsidiário a normas de direito internacional privado.
Essa ausência de regramento específico facilita a prática do forum shopping, na qual uma das partes busca iniciar o processo em uma jurisdição que lhe seja mais favorável, visando obter vantagens que podem comprometer a imparcialidade do julgamento. Embora juridicamente viável, essa estratégia levanta sérias questões éticas e de igualdade entre os cônjuges envolvidos.
Quando uma parte se vale do forum shopping, a escolha da jurisdição pode ser motivada por leis mais benéficas aos seus interesses financeiros ou patrimoniais. Essa conduta, além de prolongar os litígios, pode gerar decisões desequilibradas e, em alguns casos, dificultar o acesso à justiça da parte adversa. A inexistência de regras uniformes para divórcios com elementos transnacionais agrava esse problema, abrindo espaço para conflitos de interpretação e aplicação das normas. Nesse contexto, a busca por mecanismos internacionais que promovam maior harmonização e previsibilidade nas relações jurídicas se torna fundamental.
Em precedentes judiciais brasileiros, o Poder Judiciário tem reconhecido sua competência para julgar ações de divórcio envolvendo cidadão domiciliado no Brasil, mesmo que o casamento tenha sido celebrado no exterior e o outro cônjuge resida em outro país. Essa competência encontra amparo no artigo 12 da LINDB, que estabelece a jurisdição brasileira quando o réu for domiciliado no Brasil ou quando aqui deva ser cumprida a obrigação.
Regime de Bens e Alimentos: Divergências Significativas
A dissolução de um casamento com elementos internacionais frequentemente desencadeia impactos relevantes no âmbito patrimonial e na fixação de alimentos, cujas soluções jurídicas variam substancialmente entre os países envolvidos. A definição do regime de bens entre os cônjuges, por exemplo, pode ser estabelecida por meio de pacto antenupcial ou, na sua ausência, será determinada pela legislação vigente no local e momento da celebração do matrimônio. No Brasil, a regra do artigo 7º, §4º, da LINDB preconiza a aplicação da lei do domicílio dos nubentes na data do enlace, salvo convenção em sentido diverso.
Nos sistemas jurídicos de países como França, Alemanha e Brasil, prevalecem regimes legais supletivos. No Brasil, a comunhão parcial de bens é o regime adotado como padrão. Na França, vigora a communauté réduite aux acquêts, cuja função se assemelha à norma brasileira. Já na Alemanha, adota-se o regime de comunhão de aquestos (Zugewinngemeinschaft), que considera apenas o patrimônio adquirido durante o casamento como objeto de partilha.
Nos Estados Unidos, a regulação varia entre os estados. Estados como Arizona, Califórnia, Idaho, Louisiana, Nevada, Novo México, Texas, Washington e Wisconsin aplicam o sistema de community property, que pressupõe a divisão equitativa dos bens adquiridos durante a união. Em contrapartida, outros 40 estados norte-americanos seguem o modelo da equitable distribution, no qual a divisão patrimonial se baseia em critérios de equidade, e não necessariamente de igualdade.
As abordagens relativas à pensão alimentícia também revelam disparidades significativas. No Brasil, conforme o artigo 1.694 do Código Civil, os alimentos podem ser concedidos por prazo indeterminado, observando-se a necessidade de quem os pleiteia e a possibilidade de quem os fornece. No Reino Unido, a perspectiva dominante é a da autonomia financeira após o divórcio, o que leva à fixação de pensões por períodos curtos, exceto em situações excepcionais. Essa lógica se traduz na prática conhecida como clean break, que visa encerrar as obrigações econômicas mútuas o mais rapidamente possível.
Em contextos nos quais o patrimônio está localizado no exterior ou em que a vida do casal esteve fortemente ligada a uma jurisdição estrangeira, a aplicação da lei internacional pode se mostrar mais coerente com a realidade dos fatos. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileira reconhecem a relevância do princípio da realidade das relações jurídicas, bem como a incidência da lex rei sitae — ou seja, a aplicação da lei do local onde os bens se encontram — para uma partilha patrimonial adequada.
Sentenças Estrangeiras: Homologação e Execução
Para que uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro produza efeitos jurídicos no Brasil, é, em regra, imprescindível submetê-la previamente à homologação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme o disposto no artigo 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal. Esse procedimento consiste no reconhecimento, em âmbito nacional, da validade de decisões emanadas por autoridades judiciárias estrangeiras ou por órgãos que exerçam função jurisdicional equivalente, segundo o ordenamento brasileiro.
Essa exigência é reforçada pelo artigo 961 do Código de Processo Civil (CPC), que condiciona a eficácia de decisões estrangeiras à sua homologação pelo STJ. O trâmite processual está detalhadamente regulamentado nos artigos 216-A a 216-X do Regimento Interno do Tribunal, dispositivos introduzidos pela Emenda Regimental nº 18.
Contudo, há uma exceção relevante. No caso de sentença estrangeira de divórcio consensual simples — ou seja, aquela que versa unicamente sobre a dissolução do vínculo matrimonial, sem abranger questões como partilha de bens, alimentos ou guarda de filhos —, a homologação pelo STJ não é necessária. Nesses casos específicos, a decisão estrangeira pode ser encaminhada diretamente ao cartório de registro civil para averbação, em conformidade com o Provimento nº 53/2016 da Corregedoria Nacional de Justiça.
Nas hipóteses em que a sentença estrangeira envolva questões patrimoniais, obrigações alimentares ou direitos relacionados à guarda de filhos, a homologação pelo STJ permanece sendo um requisito obrigatório. O pedido de homologação deve ser realizado por meio eletrônico, mediante petição assinada por advogado e direcionada ao Presidente do STJ. O processo exige o recolhimento das custas judiciais e o cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 963 do CPC, além da apresentação dos documentos especificados nos artigos 216-C e 216-D do Regimento Interno do Tribunal.
Caso não haja anuência da parte contrária, torna-se necessária a sua citação: por carta rogatória, se domiciliada no exterior, ou por carta de ordem, se residente no Brasil. A carta rogatória deve ser acompanhada de tradução juramentada — ou, na ausência de tradutor juramentado para o idioma pertinente, poderá ser nomeado um tradutor ad hoc. Após a tramitação internacional, o documento retorna ao STJ, incumbindo à parte requerente apresentar a tradução do comprovante de citação (ou a comprovação de sua ausência), para que o processo possa prosseguir.
Finalmente, uma vez homologada pelo STJ, a execução da sentença estrangeira deve ser promovida perante a Justiça Federal de primeira instância, conforme o disposto no artigo 965 do CPC.
Caminhos para Harmonização e Prevenção de Conflitos
A ausência de um arcabouço normativo uniforme para o divórcio internacional impõe desafios que podem ser mitigados por meio de mecanismos preventivos. Os pactos antenupciais que contenham cláusulas de eleição de foro e de lei aplicável representam instrumentos eficazes para reduzir a probabilidade de futuras disputas.
A mediação internacional também se apresenta como uma alternativa valiosa, especialmente em litígios que envolvem filhos e questões de guarda. A inclusão de cláusulas de mediação em contratos familiares pode diminuir custos, evitar a judicialização e minimizar os impactos emocionais inerentes a essas situações.
A adoção de instrumentos internacionais tem desempenhado um papel crucial na garantia da segurança jurídica nas relações familiares transnacionais. Nesse contexto, destaca-se a Convenção da Haia sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, concluída em 2007 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 9.176/2017. Esse instrumento fortalece a cooperação entre os Estados e possibilita o reconhecimento mútuo de decisões estrangeiras sobre alimentos, promovendo maior celeridade e efetividade na proteção dos direitos fundamentais da criança e da família.
Para assistência jurídica especializada em questões de divórcio internacional e outras demandas relacionadas ao direito de família e imigração, entre em contato com a equipe da Feldmann Advocacia, com profissionais experientes em direito internacional privado. Saiba mais sobre nossos serviços de advogado de imigração.
Conclusão
O divórcio internacional explicita a urgência de um Direito de Família transnacional bem estruturado, capaz de responder à pluralidade jurídica do cenário global contemporâneo. Embora a residência habitual seja um critério de conexão amplamente utilizado, ela não elimina integralmente os riscos e as lacunas ainda existentes nesse tipo de litígio.
É fundamental que os profissionais do Direito estejam atentos à intrincada articulação entre as legislações nacionais e internacionais, aos instrumentos de cooperação jurídica entre tribunais e à utilização estratégica de cláusulas e acordos preventivos. Uma atuação técnica, prudente e estrategicamente orientada é indispensável para assegurar segurança jurídica e equidade às partes envolvidas — especialmente em contextos de vulnerabilidade, como nos casos que envolvem filhos ou dependência econômica.
A construção de um Direito de Família globalizado, fundamentado em princípios como a autonomia privada, a boa-fé e a proteção integral, configura-se como um desafio inadiável para os próximos anos.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Decreto nº 9.176, de 19 de outubro de 2017. Promulga a Convenção sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, concluída em Haia, em 23 de novembro de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 out. 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9176.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 set. 1942. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Senado Federal. Consultoria Legislativa. Divórcio internacional e a aplicação da lei do país de residência: conflito de leis e jurisdição no direito internacional privado: o problema do forum shopping. Brasília: Senado Federal, 2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/522905. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Emenda Regimental nº 18, de 6 de fevereiro de 2014. Altera dispositivos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça e disciplina o processamento de pedido de homologação de decisão estrangeira. Brasília, DF, 2014. Disponível em: https://www.stj.jus.br/static_files/stj/leis%20e%20normas/emr_18_2014_pre.pdf. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Provimento nº 53, de 16 de maio de 2016. Dispõe sobre a averbação de divórcio consensual estrangeiro diretamente em registro civil. Brasília, DF, 2016. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2515. Acesso em: 23 abr. 2025.
JUSTIA. Community property vs. equitable distribution divorce. [S. l.]